Lucia Sauerbronn
O Japonês da tinturaria batia ponto toda terça-feira de manhã lá em casa. Tivesse ou não roupa para lavar.
O Português da padaria era legal comigo. Gostava de conversar enquanto cuidava do caixa e sempre me dava umas balinhas de mel, que eu adorava.
Do outro lado da rua, tinha o Judeu da sapataria, que um dia me salvou das rodas de um carro. Ele teve câncer de garganta, por isso vendeu a sapataria para o Turco, que era chaveiro.
Quando faltava alguma coisa na cozinha, minha mãe mandava eu dar um pulo na mercearia do Italiano.
Se sobrasse troco, às vezes me deixava comer o pastel do Chinês ou uma esfiha no Árabe.
Se desse sorte, talvez ainda sobrasse um dinheirinho para me lambuzar com uma torta de creme na doceria do Alemão.
Eu costumava brincar na casa das Espanholinhas. Elas moravam em cima da loja de tecidos dos pais.
Na mesma rua ficava a borracharia do Negão, cuja filha era imbatível nas partidas de vôlei.
Eu não desgrudava da Japa, dona de uns lindos olhos puxados.
A Índia, que nunca mais vi, também estudou comigo e deve ter se tornado uma morena de cair o queixo.
Mais tarde casei com o Ruivo. Quando meus filhos nasceram com a cara do pai, passei a ser apontada como a mãe dos Enferrujadinhos.
Criança, eu era a Branca de Neve. Por sinal, o mesmo apelido do melhor jogador de pelada da rua. Por motivos opostos.
Todos tivemos amigos conhecidos por Baixinho, Boca, Bola 7, Girafa, Cabeção, Bolota, Dumbo, Tampa, Galocha, Pé Grande. As relações eram mais simples. Ninguém ficava chateado por ser identificado pela origem, cor, característica física, personalidade ou profissão.
Apelidos eram comuns. Não causavam trauma nem mágoa. Não embutiam maldade nem preconceito.
Hoje tudo isso seria absurdo. Politicamente incorreto. É claro que acho justo tomar cuidado com as palavras para não ferir ninguém. Mas palavras são menos perigosas do que pensamentos e atitudes.
Preconceito é impedir as pessoas de viver onde elas desejam, circular por onde bem entenderem, ter a profissão que escolherem e os mesmos direitos de qualquer cidadão.
Nos anos 70, era moda ter o corpo bronzeado. As meninas passavam horas tostando no sol. Eu poderia considerar uma ofensa ser chamada de Branca de Neve. Mas eu era branca como a neve! Sobrevivi ao apelido, sem ter vergonha de mim mesma.
Eu me sentiria ofendida, sim, se, ao invés de um curto e auto-explicativo Branca de Neve, passasse a ser chamada de euro-descendente. Pura hipocrisia. A expressão embute a intenção de não ofender. E isso é que é prá lá de preconceituoso.
O Brasil foi formado por portugueses, índios e escravos. No século passado, recebeu, de braços abertos, imigrantes de muitas outras origens. Convivemos com as diferenças. Aprendemos com elas e fomos esquecendo equívocos de um passado do qual não podemos ser culpados e que cada vez fazem menos sentido.
Em muitos países, o preconceito de raça e credo gera ódio, humilhação, disputas e guerras que não têm mais fim. Aqui as raças se misturaram. Em breve seremos todos mulatos. Brasileiros, graças a Deus.
Crônica publicada na Coop Revista - Abril / 2.007
Nenhum comentário:
Postar um comentário