quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A queixa de que o aluno não aprende


Tânia Ramos Fortuna (Revista Aprendizagem, 3ª edição.)
“Vi, também, turmas que, alijadas dos seus alunos problema, faziam-nos renascer, como se ‘encarnados’, em outras crianças. Isto sugere que talvez seja a modalidade de intervenção do professor e da escola a responsável pela emergência de certo tipo de dificuldade de aprendizagem”
Diante da queixa de que um aluno não aprende, é necessário, primeiro, apreciar o que e quando ele não aprende, ao invés de taxá-lo sumariamente de “burro”, incompetente ou diagnosticá-lo com dificuldades de aprendizagem. Além do mais, é preciso admitir que mesmo em casos em que este aluno possua, de fato, barreiras para aprendizagem, em sala de aula é sempre possível fazer alguma coisa, especialmente através da implementação de atividades diferenciadas e trabalhos em grupo.
Por outro lado, a própria queixa dos professores sobre as dificuldades de aprendizagem dos alunos também deve ser interpretada. Que pedido de ajuda, reconhecimento das dificuldades e despreparo denuncia, com sua queixa, este professor? Não estará ele, com a identificação e segregação dos alunos com dificuldades de aprendizagem, depositando aí a “doença” e o “distúrbio”, a fim de manter a “classe ideal”? Já testemunhei situações em que turmas inteiras eram proclamadas como incompetentes para aprender, para as quais o professor requeria sua exclusão e, assim, não sobrava ninguém na sala de aula! Vi, também, turmas que, alijadas dos seus alunos-problema, faziam-nos renascer, como se “encarnados”, em outras crianças. Isto sugere que talvez seja a modalidade de intervenção do professor e da escola a responsável pela emergência de certo tipo de dificuldade de aprendizagem.
É claro que barreiras de aprendizagem desencadeadas por fatores extra-pedagógicos existem, mas elas são, freqüentemente, em muito menor número do que os altos índices de fracasso escolar. Uma das contribuições do construtivismo está em não desconsiderar o erro, fundamento da não-aprendizagem, um quadro permanente, mas sim vê-lo como sintoma, como notícia do momento do processo. O mesmo pode ser pensado para o professor, que percebe o aluno-problema como uma acusação da sua falibilidade, do qual quer dispensar-se, removendo-o da sua classe pela via do “encaminhamento”. Que êxito pode ter este aluno em um encaminhamento cujo ponto de partida é este? A colaboração dos professores passa pela aceitação dos seus próprios limites, possibilidades e responsabilidades, sempre móveis, já que também eles estão em construção.
No que consistem, afinal, as barreiras da aprendizagem?
Visca (Visca, J. Psicopedagogia: novas contribuições. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991) as descreve em termos de obstáculos à aprendizagem, ou seja, verdadeiros dispositivos de barragem, estancando seu fluxo numa determinada direção e desviando-o para outra. O que barra a aprendizagem? Existem obstáculos denominados epistemofílicos, epistêmicos e funcionais.
Os obstáculos epistemofílicos impedem o amor pelo conhecimento, atuando, sobretudo, na esfera afetiva da aprendizagem, isto é, no significado que tem o aprender e o conhecimento para o aluno. O conteúdo a aprender atemoriza pela impressão de que vai tomar o lugar do que já foi aprendido, pela fantasia de que atacará os conhecimentos anteriores e pelo sentimento de confusão que desperta. Desencadeiam sentimentos hostis e defensivos, sendo responsáveis por boa parte das resistências ao novo conhecimento. Para desfazê-los é preciso desmontar e depois remontar a rede de relações com a aprendizagem que o aluno teceu ao longo de sua vida não só de estudante, mas também como sujeito no sentido mais amplo, revisando as modalidades de ensino-aprendizagem vivenciadas em vários contextos e sua repercussão afetiva.
Já os obstáculos epistêmicos limitam o conhecimento através dos poucos recursos intelectuais (as estruturas cognitivas) que colocam à disposição do aluno. Imaginemos a proposição de uma situação de ensino que envolva características do pensamento operatório formal para uma criança que só disponha do pensamento operatório concreto: ergue-se, aí, um obstáculo epistêmico. Os obstáculos epistêmicos constituem-se no processo de estruturação cognitiva, quer dizer, no curso da construção da inteligência. Por isso, são afetados pelos mesmos fatores que a promovem, neste caso prejudicando-a na forma de produção de retardo, lentificação ou parada da aprendizagem.
Os obstáculos funcionais, por sua vez, preenchem, de certa forma, todo o espaço que se cria entre uma e outra categoria de obstáculos, abarcando os aspectos do funcionamento intelectual. Se nos epistêmicos o aluno não dispõe dos recursos cognitivos de que precisa para aprender, nos obstáculos funcionais o aluno possui estes recursos, só que o uso que deles faz não é aquele requisitado pela situação de aprendizagem. É como se tivesse um instrumento e não soubesse o que fazer com ele, ou fizesse um uso inadequado.
Além destes obstáculos da aprendizagem, devem ser apreciados aqueles apoiados em perturbações do desenvolvimento humano em domínios gerais (neurológico, sensorial, físico, etc.), pois determinam decisivamente a aprendizagem, embora sobre ela tenham menor incidência.
Enfim, quando há compromisso com a promoção do sucesso escolar e com o progresso das aquisições evolutivas, o lamento sobre o desenvolvimento e a aprendizagem do aluno ultrapassa o tom queixoso para alçar-se à condição de sinal que o educador emite na direção da necessidade de reflexão, interpretação de sua prática, busca de ajuda e mudança de atitude.

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