A Roupa Nova do Rei
"Era uma vez um rei, tão exageradamente amigo de roupas novas, que nelas gastava todo o seu dinheiro. Ele não se preocupava com seus soldados, com o teatro ou com os passeios pela floresta, a não ser para exibir roupas novas. Para cada hora do dia, tinha uma roupa diferente. Em vez de o povo dizer, como de costume, com relação a outro rei:” Ele está em seu gabinete de trabalho “, dizia” Ele está no seu quarto de vestir”.
A vida era muito divertida na cidade onde ele vivia. Um dia, chegaram hóspedes estrangeiros ao palácio. Entre eles, havia dois trapaceiros. Apresentaram-se como tecelões e gabavam-se de fabricar os mais lindos tecidos do mundo. Não só os padrões e as cores eram fora do comum, como, também as fazendas tinham a especialidade de parecer invisível às pessoas destituídas de inteligência, ou àquelas que não estavam aptas para os cargos que ocupavam.
"Essas fazendas devem ser esplêndidas, pensou o rei. Usando-as, poderei descobrir quais os homens, no meu reino, que não estão em condições de ocupar seus postos, e poderei substituí-los
pelos mais capazes... Ordenarei, então, que fabriquem certa quantidade deste tecido para mim”.
Pagou aos dois tecelões uma grande quantia, adiantadamente, para que logo começassem a trabalhar. Eles trouxeram dois teares nos quais fingiu tecer, mas nada havia em suas lançadeiras.
Exigiram que lhes fosse dada uma porção da mais cara linha de seda e ouro, que puseram imediatamente em suas bolsas, enquanto fingia trabalhar nos teares vazios.
— Eu gostaria de saber como vai indo o trabalho dos tecelões, pensou o rei. Entretanto, sentiu-se um pouco embaraçado ao pensar que quem fosse estúpido, ou não tivesse capacidade para ocupar seu posto, não seria capaz de ver o tecido. Ele não tinha propriamente dúvidas a seu respeito, mas achou melhor mandar alguém primeiro, para ver o andamento do trabalho.
Todos na cidade conheciam o maravilhoso poder do tecido e cada qual estava mais ansioso para saber quão estúpido era o seu vizinho.
— Mandarei meu velho ministro observar o trabalho dos tecelões. Ele, melhor do que ninguém, poderá ver o tecido, pois é um homem inteligente e que desempenha suas funções com o máximo da perfeição, resolveu o rei.
Assim sendo, mandou o velho ministro ao quarto onde os dois embusteiros simulavam trabalhar nos teares vazios.
— "Deus nos acuda!" Pensou o velho ministro, abrindo bem os olhos. "Não consigo ver nada!”.
Não obstante, teve o cuidado de não declarar isso em voz alta. Os tecelões o convidaram para aproximar-se a fim de verificar se o tecido estava ficando bonito e apontavam para os teares. O pobre homem fixou a vista o mais que pôde, mas não conseguiu ver coisa alguma.
— "Céus , pensou ele. Será possível que eu seja um tolo? Se é assim, ninguém deverá sabê-lo e não direi a quem quer que seja que não vi o tecido”.
— O senhor nada disse sobre a fazenda, queixou-se um dos tecelões.
— Oh, é muito bonita. É encantadora!!! Respondeu o ministro, olhando através de seus óculos. O padrão é lindo e as cores estão muito bem combinadas. Direi ao rei que me agradou muito.
— Estamos encantados com a sua opinião, responderam os dois ao mesmo tempo e descreveram as cores e o padrão especial da fazenda. O velho ministro prestou muita atenção a tudo o que diziam, para poder reproduzi-lo diante do rei.
Os embusteiros pediram mais dinheiro, mais seda e ouro para prosseguir o trabalho.
Puseram tudo em suas bolsas. Nem um fiapo foi posto nos teares, e continuaram fingindo que teciam. Algum tempo depois, o rei enviou outro fiel oficial para olhar o andamento do trabalho e saber se ficaria pronto em breve. A mesma coisa lhe aconteceu: olhou, tornou a olhar, mas só via os teares vazios.
— Não é lindo o tecido? Indagaram os tecelões, e deram-lhe as mais variadas explicações sobre o padrão e as cores.
"Eu penso que não sou um tolo, refletiu o homem. Se assim fosse, eu não estaria à altura do cargo que ocupo. Que coisa estranha!!!...” Pôs-se então a elogiar as cores e o desenho do tecido e, depois, disse ao rei: "É uma verdadeira maravilha!!!”.
Todos na cidade não falavam noutra coisa senão nessa esplendida fazenda, de modo que o rei, muito curioso, resolveu vê-la, enquanto ainda estava nos teares. Acompanhado por um grupo de
cortesões, entre os quais se achavam os dois que já tinham ido ver o imaginário tecido, foi ele visitar os dois astuciosos impostores. Eles estavam trabalhando mais do que nunca, nos teares vazios.
— É magnífico! Disseram os dois altos funcionários do rei. Veja Majestade, que delicadeza de desenho! Que combinação de cores! Apontavam para os teares vazios com receio de que os outros não estivessem vendo o tecido.
O rei, que nada via, horrorizado pensou: "Serei eu um tolo e não estarei em condições de ser rei? Nada pior do que isso poderia acontecer-me!" Então, bem alto, declarou:
— Que beleza! Realmente merece minha aprovação!!! Por nada neste mundo ele confessaria que não tinha visto coisa nenhuma. Todos aqueles que o acompanhavam também não conseguiram ver a fazenda, mas exclamaram a uma só voz:
— Deslumbrante!!! Magnífico!!!
Aconselharam eles ao rei que usasse a nova roupa, feita daquele tecido, por ocasião de um desfile, que se ia realizar daí a alguns dias. O rei concedeu a cada um dos tecelões uma condecoração de cavaleiro, para ser usada na lapela, com o título "cavaleiro tecelão". Na noite que precedeu o desfile, os embusteiros fizeram serão. Queimaram dezesseis velas para que todos vissem o quanto estava trabalhando, para aprontar a roupa. Fingiu tirar o tecido dos teares, cortaram a roupa no ar, com um par de tesouras enormes e coseram-na com agulhas sem linha. Afinal, disseram:
— Agora, a roupa do rei está pronta.
Sua Majestade, acompanhado dos cortesões, veio vestir a nova roupa. Os tecelões fingiam segurar alguma coisa e diziam: "aqui está a calça, aqui está o casaco, e aqui o manto. Estão leves como uma teia de aranha. Pode parecer a alguém que não há nada cobrindo a pessoa, mas aí é que está a beleza da fazenda".
— Sim! Concordaram todos, embora nada estivessem vendo.
- Poderia Vossa Majestade tirar a roupa? Propuseram os embusteiros. Assim poderíamos vestir-lhe a nova, aqui, em frente ao espelho. O rei fez-lhes a vontade e eles fingiram vestir-lhe peça por peça.
Sua majestade virava-se para lá e para cá, olhando-se no espelho e vendo sempre a mesma imagem, de seu corpo nu.
— Como lhe assentou bem o novo traje! Que lindas cores! Que bonito desenho! Diziam todos com medo de perderem seus postos se admitissem que não viam nada. O mestre de cerimônias anunciou:
— A carruagem está esperando à porta, para conduzir Sua Majestade, durante o desfile.
— Estou quase pronto, respondeu ele.
Mais uma vez, virou-se em frente ao espelho, numa atitude de quem está mesmo apreciando alguma coisa.
Os camareiros que iam segurar a cauda inclinaram-se, como se fossem levantá-la do chão e foram caminhando, com as mãos no ar, sem dar a perceber que não estavam vendo roupa alguma. O rei caminhou à frente da carruagem, durante o desfile. O povo, nas calçadas e nas janelas, não querendo passar por tolo, exclamava:
— Que linda é a nova roupa do rei! Que belo manto! Que perfeição de tecido!
Nenhuma roupa do rei obtivera antes tamanho sucesso!
Porém, uma criança que estava entre a multidão, em sua imensa inocência, achou aquilo tudo muito estranho e gritou:
— Coitado!!! Ele está completamente nu!! O rei está nu!!
O povo, então, enchendo-se de coragem, começou a gritar:
— Ele está nu! Ele está nu!
O rei, ao ouvir esses comentários, ficou furioso por estar representando um papel tão ridículo! O desfile, entretanto, devia prosseguir, de modo que se manteve imperturbável e os camareiros continuaram a segurar-lhe a cauda invisível. Depois que tudo terminou, ele voltou ao palácio, de onde envergonhado, nunca mais pretendia sair. Somente depois de muito tempo, com o carinho e afeto demonstrado por seus cortesões e por todo o povo, também envergonhados por se deixarem enganar pelos falsos tecelões, e que clamavam pela volta do rei, é que ele resolveu se mostrar em breves aparições... Mas nunca mais se deixou levar pela vaidade e perdeu para sempre a mania de trocar de roupas a todo o momento.
Quanto aos dois supostos tecelões, desapareceram misteriosamente, levando o dinheiro e os fios de seda e ouro. Mas, depois de algum tempo, chegou a notícia na corte, de que eles haviam tentado fazer o mesmo golpe em outro reino e haviam sido desmascarados, e agora cumpriam uma longa pena na prisão.
Hans Christian Andersen
Tiquinho de Carvão
“Uma senhora fez, um dia, cinco tortas. Quando elas saíram do forno, estavam tão duras que não podiam ser comidas. Por isso, a senhora disse à filha”:
— Querida, ponha as tortas na prateleira e deixe-as lá, descansando um pouco, para ver se amolecem. A mocinha, que era muito gulosa, disse consigo mesma: "Pois sim, eu vou comê-las de
uma só vez". E comeu-as, da primeira à última. Mais tarde, quando acabaram de jantar, a senhora disse à filha:
—Vá buscar uma daquelas tortas. Agora já poderemos comê-la. A moça levantou-se da mesa, foi até a prateleira, onde só havia pratos vazios, voltou e disse à mãe:
— As tortas ainda não amoleceram.
— Nenhuma delas? Perguntou a senhora.
— Nenhuma, respondeu a moça.
— Bem, volte lá e traga-me uma de qualquer maneira. Quero comê-la assim mesmo, resolveu a senhora.
— Mas é impossível, ainda estão muito duras, continuou a filha.
— Não faz mal, respondeu a mãe. Veja a que estiver melhor.
— Melhor ou pior, você não poderá comer nenhuma, porque eu comi todas, explicou a moça.
A senhora ficou muito aborrecida. Apanhou a roca e foi fiar na varanda. Enquanto fiava, ia
falando alto:
— Que vergonha! Minha filha comeu cinco tortas de uma só vez...
O Rei tinha saído para passear. Quando passou pela porta da casa da senhora, como não entendesse o que ela estava dizendo, parou e perguntou-lhe:
— O que você está dizendo, boa mulher???
Ela, com vergonha do que a filha tinha feito, respondeu:
— Eu estava dizendo que minha filha hoje fiou cinco meadas de linha, meu Rei!
— Céus, exclamou o Rei. Nunca ouvi dizer que alguém conseguisse fazer tal coisa. Escute, eu preciso de uma esposa prendada e casar-me-ei com sua filha. Preste, porém, muita atenção: durante onze meses no ano, ela poderá comer o que desejar usará as roupas que quiser e terá as companhias que mais lhe agradarem. Entretanto, no último mês do ano, ela terá que fiar cinco meadas de linha por dia ou, então, mandarei matá-la.
— Muito bem, disse a senhora, que estava pensando apenas nas vantagens de ter a filha casada com o rei.
Quanto às cinco meadas que ela teria que fiar em cada dia do último mês, bem... Depois ela encontraria uma solução. Quem sabe, até lá, o Rei poderia esquecer-se disso...
Casaram-se, então, o Rei e a mocinha. Durante onze meses, de fato, ela comeu coisas gostosas, usou roupas bonitas e teve companhias agradáveis. Quando já ia se aproximando o décimo segundo mês, ela começou a pensar de que modo se arranjaria para fiar cinco meadas por dia.
Como, porém, o rei não se referisse ao assunto, ela pensou que ele o tivesse esquecido. Todavia, no último dia do décimo primeiro mês, ele a levou a um quarto que ela nunca tinha visto, onde havia uma roca e um banco. O Rei explicou-lhe:
— Amanhã, minha querida, você virá para aqui, onde passará todo o mês, fiando cinco meadas por dia. Um empregado trará suas refeições e, à noite, eu virei recolher sua tarefa. Se não estiver pronta, já sabe o que lhe acontecerá, não é? Dito isso, retirou-se. A moça ficou muito nervosa. Ela nunca soubera fiar. Que seria dela, sem ter quem a ajudasse? Foi até a cozinha e sentou-se num banco, chorando. Daí a momentos ouviu uma pancada leve na porta. Levantou-se e abriu-a. O que viu foi simplesmente um animalzinho preto, muito pequeno e esquisito, com uma cauda longa que balançava sem parar.
— Por que está chorando? Perguntou ele.
— Quem é você? Retrucou ela.
— Não se preocupe com isso, continuou o bichinho.
— Porque terei que fazer uma coisa que não sei. Se não a fizer, estarei perdida. E contou-lhe a história toda, desde o começo.
— Esteja tranqüila, pois vou ajudá-la. Todas as manhãs baterei à sua janela para apanhar a linha e, à noite, trarei as cinco meadas prontas.
— Que lhe darei em troca deste favor? Perguntou ela.
— Você terá que adivinhar meu nome, ou eu contarei tudo a seu marido.
— Está bem, concordou ela.
Balançando a cauda, retirou-se o animalzinho. No dia seguinte, o Rei levou-a ao quarto onde já estava a linha para fiar. Fechou a porta por fora e foi-se embora. Mal ele havia saído, bateram de leve à janela. A moça foi espiar e lá estava o animalzinho preto. Ela então lhe entregou a linha. À noitinha, a moça ouviu nova pancada na janela. Abriu-a e seu protetor colocou em suas mãos cinco meadas muito bem fiadas.
— Agora, responda-me, qual é o meu nome? Perguntou ele.
— Será Juquinha?
O bichinho sacudiu a cabeça negativamente.
— Será Tonico?
Ele continuou a sacudir a cabeça e balançava a cauda cada vez mais depressa.
— Será Maneco?
— Não, disse ele e saiu correndo.
Quando o Rei voltou, à noite, encontrou as meadas prontas e disse:
— Muito bem, minha querida. Amanhã você receberá mais linha para continuar sua tarefa.
E assim sempre acontecia. Pela manhã lhe traziam a linha e, às horas certas, um empregado aparecia com as refeições. O animalzinho preto aparecia cedo para apanhar a linha e voltava ao anoitecer, trazendo as meadas prontas. A moça passava os dias pensando qual seria o nome do bichinho, mas nunca o descobria. Afinal, chegou a véspera do último dia. À noite, quando o animalzinho apareceu, perguntou-lhe:
— Já descobriu meu nome?
Ela fez novas tentativas:
— Chiquinho? Janico?
Cada vez o bichinho sacudia mais a cauda e seus olhinhos brilhavam, cheios de malícia.
— Escute, você só tem o dia de amanhã para adivinhar, do contrário... Avisou ele, e saiu correndo.
A moça ficou horrorizada. Logo a seguir, ouviu os passos de seu marido que vinha vindo.
Quando ele entrou, ela lhe entregou as cinco meadas prontas e ele lhe disse:
— Amanhã é o último dia. Tome cuidado, se não aprontar sua tarefa, perderá a vida. Hoje, vou jantar aqui com você. Entrou um empregado trazendo o jantar e outro banquinho para o Rei. Os dois sentaram-se e o Rei começou a rir.
— Por que está rindo? perguntou a moça.
— Porque hoje vi uma coisa muito interessante, respondeu ele. Pela manhã, saí para caçar.
Fui andando pela mata e cheguei a um lugar que nunca havia visto antes. Sentei-me um instante para descansar e ouvi um barulhinho estranho. Levantei-me para verificar o que havia. Olhei para todos os lados e, afinal, atrás de uma árvore, descobri um animalzinho preto, muito pequeno e esquisito, com uma cauda comprida que agitava sem parar. À sua frente estava uma roca, onde ele fiava com rapidez espantosa. Enquanto fazia isso, ia cantando:
"Eu sou todo pretinho,
Pareço um tição,
Meu nome é Tiquinho,
Tiquinho de Carvão."
O coração da moça deu um salto ao ouvir isso. Quase ela gritou de alegria, mas conservou-se muito quietinha no banco, sem dizer palavra. Na manhã seguinte, o bichinho veio apanhar a linha. Quando a noite já vinha chegando, apareceu ele, trazendo de volta as meadas. Seus olhinhos brilhavam mais maliciosos do que nunca e a caudinha girava sem parar um instante.
— Qual é o meu nome? Perguntou ele.
— Será Salomão? Indagou ela.
— Não, respondeu ele.
— Zebedeu? Tornou a perguntar a moça.
— Não, entretanto, vou dar-lhe mais uma oportunidade. Se ainda não acertar, já sabe o que vai acontecer...
A moça deu uma grande gargalhada e disse:
"Tu és todo pretinho,
Pareces um tição,
Teu nome é Tiquinho,
Tiquinho de Carvão."
Quando o animalzinho ouviu isso, deu um guincho horrível, saiu correndo pela escuridão a dentro e nunca mais apareceu. Mais tarde veio o Rei. Apanhou as meadas e tirou a moça do quarto.
No dia seguinte, ofereceu um banquete à esposa, para o qual convidou todas as pessoas da cidade.
Havia, na mesa, as tortas mais deliciosas que se possa imaginar. A moça, no entanto, lembrando-se dos maus momentos por que tinha passado, por ter comido cinco tortas de uma vez, não quis provar de nenhuma..."
Adaptação do English Fairy Tales, por Joseph Jacobs
A Pequena Vendedora de Fóforos
Que frio tão atroz! Caía a neve, e a noite vinha por cima. Era dia de Natal. No meio do frio e da escuridão, uma pobre menina passou pela rua com a cabeça e os pés descobertos.
É verdade que tinha sapatos quando saiu de casa; mas não lhe serviram por muito tempo.
Eram uns tênis enormes que sua mãe já havia usado: tão grandes, que a menina os perdeu quando atravessou a rua correndo, para que as carruagens que iam em direções opostas não lhe
atropelassem.
A menina caminhava, pois, com os pezinhos descalços, que estavam vermelhos e azuis de frio, levava no avental algumas dúzias de caixas de fósforos e tinha na mão uma delas como amostra. Era um péssimo dia: nenhum comprador havia aparecido, e, por conseqüência, a menina não havia ganho nem um centavo. Tinha muita fome, muito frio e um aspecto miserável. Pobre menina! Os flocos de neve caíam sobre seus longos cabelos loiros, que caíam em lindos caracóis sobre o pescoço; porém, não pensava nos seus cabelos. Via a agitação das luzes através da janela;
sentia-se o cheiro dos assados por todas as partes.
Era dia de Natal, e nesta festa pensava a infeliz menina.
Sentou-se em uma pracinha e se acomodou em um cantinho entre duas casas. O frio se apoderava dela e inchava seus membros; mas não se atrevia a aparecer em sua casa; voltava com todos os fósforos e sem nenhuma moeda. Sua madrasta a maltrataria, e, além disso, na sua casa também fazia muito frio. Viviam debaixo do telhado, a casa não tinha teto, e o vento ali soprava com fúria, mesmo que as aberturas maiores haviam sido cobertas com palha e trapos velhos. Suas mãozinhas estavam quase duras de frio. Ah! Quanto prazer lhe causaria esquentar-se com um fósforo! Se ela se atrevesse a tirar só um da caixa, riscaria na parede e aqueceria os dedos! Tirou um! Rich! Como iluminava e como esquentava! Tinha uma chama clara e quente, como de uma velinha, quando a rodeou com sua mão. Que luz tão bonita! A menina acreditava que estava sentada em uma chaminé de ferro, enfeitada com bolas e coberta com uma capa de latão reluzente. Luzia o fogo ali de uma forma tão linda! Esquentava tão bem!
Mas, tudo acaba no mundo. A menina estendeu seus pezinhos para esquentá-los também, mas a chama se apagou: não havia nada mais em sua mão além de um pedacinho de fósforo. Riscou outro, que acendeu e brilhou como o primeiro; e ali onde a luz caiu sobre a parede, fez-se tão transparente como uma gaze. A menina imaginou ver um salão, onde a mesa estava coberta por uma toalha branca resplandecente com finas porcelanas, e sobre a qual um peru assado e recheado de trufas exalava um cheiro delicioso. Oh surpresa! Oh felicidade! Logo teve a ilusão de que a ave saltava de seu prato para o chão, com o garfo e a faca cravados no peito, e rodava até chegar a seus pezinhos. Mas, o segundo fósforo apagou-se, e ela não viu diante de si nada mais que a parede impenetrável e fria.
Acendeu um novo fósforo. Acreditou, então, que estava sentada perto de um magnífico nascimento: era mais bonito e maior que todos os que havia visto aqueles dias nas vitrines dos mais ricos comércios. Mil luzes ardiam nas arvorezinhas; os pastores e pastoras pareciam começar a sorrir para a menina. Esta, embelezada, levantou então as duas mãos, e o fósforo se apagou. Todas as luzes do nascimento se foram, e ela compreendeu, então, que não eram nada além de estrelas.
Uma delas passou traçando uma linha de fogo no céu.
— Isto quer dizer que alguém morreu - pensou a menina; porque sua vovozinha, que era única que havia sido boa com ela, mas que já não estava viva, havia lhe dito muitas vezes: "Quando cai uma estrela, é que uma alma sobe para o trono de Deus".
A menina ainda riscou outro fósforo na parede, e imaginou ver uma grande luz, no meio da qual estava sua avó em pé, e com um aspecto sublime e radiante.
— Vovozinha! - gritou a menina. - Leve-me com você! Quando o fósforo se apagar, eu sei bem que não lhe verei mais! Você desaparecerá como a chaminé de ferro, como o peru assado e como o formoso nascimento!
Depois se atreveu a riscar o resto da caixa, porque queria conservar a ilusão de que via sua avó, e os fósforos lhe abriram uma claridade vivíssima. Nunca a avó lhe havia parecido tão grande nem tão bonita. Pegou a menina nos braços e as duas subiram no meio da luz até um lugar tão alto, que ali não fazia frio, nem se sentia fome, nem tristeza: até o trono de Deus.
Quando raiou o dia seguinte, a menina continuava sentada entre as duas casas,com as bochechas vermelhas e um sorriso nos lábios. Morta, morta de frio na noite de Natal! O sol iluminou aquele terno ser, sentado ali com as caixas de fósforos, das quais uma havia sido riscada por completo.
— Queria esquentar-se, a pobrezinha! - disse alguém. Mas , ninguém podia saber as coisas lindas que havia visto, nem em meio de que esplendor havia entrado com sua idosa avó no reino dos céus.
Hans Christian Andersen
O Gigante Egoísta
Todas as tardes, à saída da escola, as crianças estavam acostumadas a ir brincar no jardim do gigante. Era um jardim grande e muito bonito, coberto de grama verde e suave.
Dispersas sobre a grama brilhavam belas flores como estrelas e havia uma dúzia de pessegueiros que, na primavera, cobriam-se de delicados botões rosáceos e, no outono, davam saborosos frutos.
Os pássaros pousavam nas árvores e cantavam tão deliciosamente que as crianças interrompiam suas brincadeiras para escutá-los .
— Que felizes somos aqui! - gritavam uns aos outros.
Um dia, o gigante regressou. Fora visitar seu amigo, o ogro de Cornualles e permanecera com ele durante sete anos. Transcorridos sete anos, havia dito tudo o que tinha que dizer, pois era um homem parco em palavras e decidiu voltar para seu castelo. Ao chegar, viu as crianças brincando no jardim.
— O que vocês estão fazendo aqui? - gritou-lhes com voz azeda e as crianças saíram correndo.
— Meu jardim é meu jardim - disse o gigante. -Já chegou a hora de vocês entenderem isso e não vou permitir que ninguém além de mim brinque nele.
Então, construiu um alto muro ao redor do jardim e pôs o seguinte cartaz: Proibida a entrada.
Os transgressores serão processados judicialmente.
Era um gigante muito egoísta.
As pobres crianças não tinham, então, onde brincar.
Tentaram fazê-lo na estrada, mas a estrada estava cheia de poeira e de pedras pontiagudas e não gostaram.
Acostumaram-se a vadiar de um lado para o outro, ao terminar os deveres da escola, ao redor do alto muro, para conversar sobre o lindo jardim que havia do outro lado.
— Que felizes éramos ali! - diziam-se uns aos outros.
Então, chegou a primavera e o país todo encheu-se de botões e passarinhos. Só no jardim do gigante egoísta continuava sendo inverno.
Os pássaros não se preocupavam de cantar ali desde que não houvesse crianças e as árvores se esqueceram de florescer. Só uma bonita flor levantou a cabeça sobre o mato, mas quando viu o cartaz entristeceu-se tanto, pensando nas crianças, que se deixou cair outra vez na terra e adormeceu.
Os únicos satisfeitos eram a Neve e o Gelo.
— A primavera esqueceu-se deste jardim - gritavam. -Poderemos viver aqui durante o ano todo.
A Neve cobriu a grama toda com seu manto branco e o gelo pintou de prata todas as árvores.
Então, convidaram o vento do Norte para passar uma temporada com eles e o Vento aceitou.
Chegou coberto de peles e uivava o dia todo pelo jardim, derrubando as capuchas das chaminés.
— Este é um lugar delicioso - dizia. -Temos que dizer ao Granizo que venha nos visitar.
E chegou o Granizo. Cada dia durante três horas tocava o tambor sobre o telhado do castelo, até que quebrou a maioria das telhas e então pôs-se a dar voltas ao redor do jardim correndo o mais veloz que podia. Ia vestido de cinza e seu hálito era como o gelo.
— Não posso compreender como a primavera demora tanto para chegar - dizia o gigante egoísta, ao olhar pela janela e ver seu jardim branco e frio. -Espero que este tempo mude!
Mas ,a primavera não chegou e o verão também não. O outono deu dourados frutos a todos os jardins, mas ao jardim do gigante não lhe deu nenhum.
— É egoísta demais - dizia.
Assim sendo, sempre era inverno na casa do gigante e o Vento do Norte, o Gelo, o Granizo e a Neve dançavam entre as árvores.
Uma manhã, o gigante ainda estava deitado, quando ouviu uma música deliciosa. Soava tão docemente aos seus ouvidos que ele pensou que seria o rei dos músicos que passava por ali. Na realidade era só um pintassilgo que cantava diante de sua janela, mas fazia tanto tempo que ele não ouvia um pássaro cantar no seu jardim, que lhe pareceu a música mais bonita do mundo. Então o Granizo deixou de dançar sobre sua cabeça, o Vento do Norte deixou de rugir, e um delicado perfume chegou até ele, através da janela aberta.
— Acho que, finalmente, chegou a primavera - disse o gigante; e saltando da cama olhou para fora. O que foi que ele viu?
Viu um espetáculo maravilhoso. Por uma fresta aberta no muro, as crianças tinham penetrado no jardim, tinham subido às arvores e estavam sentadas nos seus galhos. Em todas as árvores que estavam ao alcance de sua vista, havia uma criança. E as árvores se sentiam tão felizes de tornar a ter as crianças consigo, que se cobriram de botões e agitavam suavemente seus galhos sobre a cabeça das crianças .
Os pássaros revoluteavam e conversavam com deleite e as flores riam erguendo a cabeça sobre a grama. Era uma cena maravilhosa. Só num cantinho continuava sendo inverno.
Era o cantinho mais afastado do jardim e ali se encontrava um menino muito pequeno. Tão pequeno que não podia alcançar os galhos da árvore e dava voltas ao seu redor chorando desconsolado. A pobre árvore continuava ainda coberta de gelo e neve e o Vento do Norte soprava e rugia a sua volta.
— Suba, pequeno! Dizia-lhe a árvore e lhe esticava seus galhos bem abaixo o mais que podia; mas o menino era pequeno demais. O coração do gigante enterneceu-se ao contemplar aquele espetáculo.
Que egoísta que eu fui - disse lá com seus botões. -Agora compreendo porque a primavera não veio até aqui. Vou colocar o menininho no alto da árvore, derrubarei o muro e meu jardim será o parque de recreio das crianças para sempre .
Estava verdadeiramente arrependido pelo que tinha feito.
Lançou-se escadas abaixo, abriu a porta principal com toda suavidade e saiu ao jardim.
Mas, as crianças ficaram tão assustadas quando o viram que fugiram correndo e no jardim voltou a ser inverno.
Só o menininho não correu, pois seu olhos estavam tão cheios de lágrimas, que não viu o gigante chegar perto dele. E o gigante deslizou-se atrás dele, pegou-o carinhosamente no colo e colocou-o sobre a árvore. A árvore floresceu imediatamente, os pássaros se aproximaram e a criança estendeu os bracinhos, rodeou com eles o pescoço do gigante e beijou-o.
Quando as outras crianças viram que o gigante já não era mau, voltaram correndo e a primavera voltou com eles.
— De agora em diante, este é o jardim de vocês, minhas queridas crianças - disse o gigante, e pegando um grande machado derrubou o muro. E quando ao meio-dia passaram por ali pessoas que iam ao mercado, encontraram o gigante brincando com as crianças no jardim mais bonito que eles já tinham visto.
Durante todo o dia estiveram brincando e ao entardecer foram se despedir do gigante.
— Mas onde está o menininho, aquele que eu subi à árvore? - perguntou.
Esta era a criança que o gigante mais gostava porque o havia beijado.
— Não sabemos - responderam as crianças - foi-se embora.
— Diga-lhe que venha amanhã sem falta - disse-lhes o gigante .
Mas, as crianças disseram que não sabiam onde ele morava e nunca tinham-no visto antes. O gigante ficou muito triste.
Todas as tardes, quando terminavam as aulas, as crianças iam brincar com o gigante. Mas ,o menininho, de que o gigante tanto gostava, não apareceu nunca mais. O gigante era muito bom com todas as crianças, mas sentia saudade daquele pequenininho e, muitas vezes, falava dele.
— Como eu gostaria de vê-lo - costumava dizer.
Transcorreram vários anos e o gigante envelheceu muito e cada vez estava mais débil. Já não podia participar das brincadeiras; sentado na sua grande poltrona via as crianças brincarem e admirava seu jardim.
— Tenho muitas flores formosas - dizia - mas as crianças são as flores mais belas. Uma manhã invernal olhou pela janela, enquanto estava se vestindo. Já não detestava o inverno, pois sabia que o inverno não era mais que a primavera adormecida e o repouso das flores.
De repente, esfregou os olhos, atônito e olhou e tornou a olhar. Verdadeiramente, tratava-se de uma visão maravilhosa. No mais longínquo cantinho do jardim, havia uma árvore totalmente coberta de lindos botões brancos. Seus galhos eram dourados, frutos de prata penduravam-se deles e debaixo, de pé, estava o menininho que ele tanto gostava.
O gigante correu escadas abaixo com grande alegria e saiu ao jardim. Correu precipitadamente pela grama e chegou perto do menino. Quando estava perto dele, seu rosto ficou vermelho de raiva e exclamou:
— Quem se atreveu a feri-lo? -Pois nas palmas das mãos do menino havia a marca de dois pregos, e a mesma coisa acontecia nos seus pezinhos.
— Quem se atreveu a feri-lo? - gritou o gigante - Diga-me quem foi para que eu pegue minha espada e o mate.
— Não - respondeu o menininho. Estas são feridas do amor.
— Quem é você? - perguntou o gigante; e um estranho temor invadiu-o, fazendo-o cair de joelhos diante do pequeno.
E o menino sorriu ao gigante e lhe disse:
— Uma vez você me deixou brincar no seu jardim, hoje você virá comigo ao meu jardim, que é o Paraíso.
E quando chegaram as crianças àquela tarde, encontraram o gigante deitado, morto, debaixo da árvore, todo coberto de botões brancos.
Oscar Wilde
O Príncipe Pobre
Era uma vez um príncipe bom e simples, que resolveu se casar.
Achou que era grande atrevimento perguntar à filha do imperador se o queria por esposo, já que não era tão rico assim; mas decidiu-se a fazê-lo porque a fama do seu honrado nome se estendia por toda parte.
Acontece que, no lugar onde o pai estava enterrado, tinha crescido uma esplêndida roseira que só dava flor de cinco em cinco anos e, mesmo nestas ocasiões, só nascia uma rosa; era, porém, uma rosa magnífica, que exalava um aroma tão suave e delicioso que quem o aspirava esquecia todas as suas tristezas e inquietações.
O príncipe também possuía um rouxinol; cantava com voz tão harmoniosa que parecia ter na garganta todas as melodias da terra.
O nosso príncipe resolveu oferecer à princesa estas duas raridades como prova do seu amor; colocou-as em dois preciosos cofres de prata e enviou-as à sua amada.
O imperador mandou que levassem a oferta para um amplo salão onde estava a filha a divertir-se com as damas da corte. Quando a princesa viu os cofres, começou a bater palmas em sinal de regozijo, exclamando:
— Que alegria, se algum deles contiver uma linda prenda!
Mas, aberto o primeiro, apareceu a linda roseira com a sua magnífica rosa, e quando a princesa a
viu foi tal a sua desilusão que esteve a ponto de chorar.
— Ora, meu pai! - exclamou ela, muito amargurada.
— Vamos ver o que contém o outro cofre. - lembrou o imperador.
Abriu-se o segundo, e saiu de dentro o rouxinol, que começou a cantar de maneira tão suave e melodiosa que todos ficaram encantados... todos menos a princesa, que o considerou com indiferença.
— Parece-me que não é verdadeiro. - disse ela.
— É sim, princesa. - responderam os que o tinham trazido.
— Neste caso, soltem-no. - acrescentou ela.
E não quis de forma alguma ver o príncipe.
Mas este não perdeu por isso a esperança. Sujou o rosto com lama, enfiou o chapéu até as orelhas e foi bater à porta do imperador.
— Deus traga felizes dias a Vossa Majestade Imperial! - disse ele. - Há qualquer lugar no palácio que me possam dar?
— Sim, por acaso, - respondeu o imperador - preciso de uma pessoa que cuide da grande quantidade de porcos que tenho.
E o príncipe foi nomeado "Porqueiro Imperial". Passou o dia inteiro trabalhando num casebre imundo, contíguo ao curral, que lhe indicaram como seu quarto; ao fim da tarde, tinha já feito uma linda caçarola enfeitada com umas campainhas penduradas em redor; e quando se punha ao fogo e o conteúdo fervia, as campainhas tocavam alegremente, fazendo ouvir uma antiga canção.
A propriedade mais curiosa daquela caçarola era que, se alguém introduzia o dedo no vapor que se desprendia, e depois o aproximava do nariz, sentia o cheiro de todos os cozidos que se estavam fazendo nos fornos e fogões da cidade.
Por sorte, aconteceu que a princesa, no seu habitual passeio, chegou defronte do quarto do porqueiro; e ao ouvir a antiga canção, parou admirada, porque era a única peça de música que sabia.
— Ouçam! É a minha música! Este porqueiro deve ser uma pessoa instruída e bem educada.
Perguntem-lhe quanto quer por esse instrumento.
Uma das damas entrou no casebre e perguntou:
— Quanto queres por essa caçarola?
— Dez beijos da princesa. - respondeu o porqueiro.
— Que atrevido! - exclamou a dama indignada.
— Que disse ele? - indagou a princesa.
E a dama repetiu ao ouvido da princesa as palavras do porqueiro.
— É um atrevido - disse esta e continuou seu caminho.
Tinha dado apenas alguns passos e as campainhas começaram de novo a soar tão harmoniosamente que parou outra vez.
— Vão perguntar-lhe - ordenou a jovem - se ele quer dez beijos das minhas damas.
— Não, obrigado, - foi a resposta do porqueiro - dez beijos da princesa ou fico com a caçarola.
— Faça-se a tua vontade - disse, por fim, a princesa. – Mas, coloquem-se todas em roda de
mim para que ninguém nos veja.
As damas da corte assim o fizeram e encobriram bem os dois, com suas saias.
O porqueiro recebeu os beijos e a princesa a caçarola.
Foi depois um grande divertimento. A caçarola esteve fervendo ao fogo toda a noite e todo o
dia seguinte e não houve ninguém no palácio que não ficasse sabendo o que se estava cozinhando
em todas as casas, desde a do mais nobre até a do mais pobre. As damas da corte dançavam e
mostravam-se contentíssimas.
— Agora sabemos - diziam elas, entusiasmadas - quem é que hoje come sopas e quem come
pastéis; quem tem doces e quem só tem frutas. Que interessante isto é!
Entretanto, o porqueiro, quer dizer, o príncipe, que, como sabemos, assim se tinha
disfarçado, não deixava passar um só dia sem fazer qualquer trabalho; compôs uma espécie de roca que, quando a faziam girar, tocava todas as músicas populares.
— Que maravilha! - exclamou a princesa, que a ouviu quando ia passando. - Perguntem-lhe quanto quer por esse instrumento.
— Dez beijos dos lábios de Vossa Alteza. - voltou dizendo a dama que tinha ido levar o recado da sua senhora.
— Parece-me que não está em seu juízo. - disse a princesa e continuou no seu passeio. Mas tinha dado apenas alguns passos, quando parou dizendo:
— Temos o dever de animar os artistas. Digam-lhe que lhe pagaremos com um beijo meu e um de cada uma das minhas damas.
— Mas, nós não estamos dispostas a dá-los! - protestaram as damas em coro.
— Que dizeis??? - exclamou a princesa, indignada. - Então eu posso dá-los e vós não podeis?
As damas tiveram de entrar pela segunda vez no quarto do porqueiro, fazendo-lhe nova proposta.
— Dez beijos dos lábios da princesa. - repetiu inalterável o ousado porqueiro.
— Ponham-se em volta de mim. - ordenou aquela, vendo que não tinha outro jeito.
E as damas colocaram-se em torno da princesa, encobrindo-a com suas saias, enquanto ela dava os beijos no porqueiro.
— Que será aquela aglomeração junto do curral? - notou, curioso, o imperador, chegando-se a uma das janelas do palácio. - Vou eu mesmo ver o que é aquilo.
Desceu ao jardim e, andando nas pontas dos pés, aproximou-se sem fazer barulho do grupo formado pelas damas; estas estavam tão entretidas na tarefa de contar os beijos da sua senhora no porqueiro que não deram pela chegada do imperador.
— Que significa isto? - exclamou o soberano, ao ver o que estava acontecendo. E, indignado, deu um repelão na princesa no momento em que esta dava o beijo número seis.
— Fora daqui! - rugiu o imperador, cego de cólera.
E a princesa e o porqueiro foram expulsos da cidade.
— Ai de mim, - soluçava a princesa, desolada - por que não havia eu de ter casado com aquele príncipe tão gentil? Como sou desgraçada!
Então o porqueiro se escondeu atrás de uma árvore, tirou toda a lama que lhe escondia o semblante, desfez-se das roupas esfarrapadas e apareceu com seu traje principesco, tão nobre que a princesa se inclinou reverentemente.
— Tens o que mereces. - disse-lhe o príncipe. - Não quiseste receber como esposo um príncipe nobre e honrado; não soubeste apreciar o valor da rosa e do rouxinol; e, no entanto, não te custou nada dar beijos num porqueiro imundo em troca de uma futilidade.
E o príncipe girou sobre os calcanhares e partiu, só, em direção ao seu reino.
Do Tesouro da Juventude - Volume XIII
OS SETE URUBUS
Houve, em outros tempos, uma viúva que tinha oito filhos, sendo sete rapazes e uma menina. Esta, apesar de ser muito pequena, já era muito linda e muito dócil; os sete irmãos, ao contrário, eram tão maus e desobedientes, que ao velho avô se tornava impossível governá-los.
Um dia, aconteceu que os sete rapazes brincaram fora de casa mais tempo do que lhes havia sido concedido e não atenderam à ordem de sua mãe, que os chamara. Afinal, resolveram voltar para casa, mas entraram fazendo muito barulho e malcriações. A mãe, indignando-se com o mau procedimento dos filhos, exclamou:
— Acomodem-se, meninos perversos! Urubus malditos!
Mal acabara de pronunciar essas palavras, eis que os rapazes se transformaram em sete urubus, que principiaram a grasnar e a voar, e saíram, por fim, pela janela que estava aberta, desaparecendo no horizonte.
A mãe e o avô ficaram aterrorizados diante de tão triste espetáculo e a irmãzinha, compreendendo a terrível situação, começou a chorar, consolando-se somente quando a mãe e o avô lhe disseram que certamente os irmãos voltariam para casa, novamente transformados em meninos, como eram antes.
Passaram-se muitos anos e os irmãos não voltaram; a mãe e o avô já tinham perdido a esperança de tornar a vê-los. Somente a irmãzinha, por essa época, uma moça muito linda, continuava a alimentar a esperança de vê-los um dia voltar para casa.
Não podem ter voado para fora do mundo, pensava ela. Irei procurá-los por toda parte porque, se não o fizesse, não teria paz durante toda a minha vida.
Assim resolvida, pediu licença a sua mãe e ao avô e, despedindo-se, partiu, levando um cesto com mantimentos e um banquinho para descansar.
Em todas as aldeias onde chegava, perguntava se não tinham visto os sete urubus, ao que todos respondiam negativamente.
Por esta forma, andou durante muito tempo, sem encontrar vestígio de seus infelizes irmãos.
Uma tarde, achando-se muito fatigada, deitou-se perto de um bosque e adormeceu. Ao despertar, viu brilhar no firmamento a estrela d'alva, que fazia refletir sobre ela o seu brilho resplandecente; diante de tão sublime espetáculo, não pôde deixar de exclamar:
Oh! tu, estrela tão linda,
A ti, peço, estendo a mão.
Procuro, choro por eles,
Dize-me tu, onde estarão?
A ti, peço, estendo a mão.
Procuro, choro por eles,
Dize-me tu, onde estarão?
A linda estrela logo se transformou em um galante menino, de cabelos loiros e anelados, vestido de branco, que, descendo do céu, lhe disse, entregando uma chave de ouro:
Habitam os teus irmãos
no cimo do Montebelo;
Toma esta chave, menina.
Abre a porta do Castelo.
Depois tornou a subir para o céu, desaparecendo através das nuvens. A menina, muito contente, começou logo a caminhar na direção indicada e dentro em breve achou-se no Castelo do Falcão.
Neste castelo, tinha morado antigamente um conde, em companhia de um único filho; não se sabe porque, um dia, uma fada má dissera ao pobre pai:
— Seu filho será transformado em um falcão feroz, até que a estrela d'alva lhe mande uma noiva. Todas as suas riquezas serão escondidas em uma caixinha e você será transformado em um anão para guardá-las. Quando chegar a noiva do falcão, poderá entregar-lhe a caixa, acabando nessa ocasião o seu encanto e o de seu filho.
A fada desapareceu e a sua predição imediatamente se realizou: o belo jovem se transformou em um falcão feroz e o conde em anão de barbas brancas. Tudo o que existia no castelo desapareceu, ficando nele somente as salas vazias, uma caminha, uma mesa e a caixinha fechada.
Fôra neste triste e sombrio palácio que os sete urubus acharam guarida, depois de terem vagado durante muito tempo pelo espaço. Ao se apresentarem, eles juraram fé ao falcão e prometeram não o abandonar, até que para todos chegasse o dia da libertação de tão horrível encanto.
Ao chegar ao castelo, a jovem, encontrando a porta fechada, tocou com a chave de ouro na fechadura, aparecendo, logo o anão, que lhe perguntou o que queria.
— Aqui vim - respondeu ela - por ordem da estrela d'alva, à procura dos sete urubus.
Ouvindo isso, o anão inclinou-se reverentemente diante dela e respondeu:
— Os urubus não estão em casa; foram à caça juntamente com o falcão, meu filho. Convido-a a esperar até a meia-noite, pois estou certo que ficarão alegres e satisfeitos em vê-la aqui quando voltarem.
E assim falando, o anão a fez subir para o quarto, acrescentando:
— Como vê, a mesa está posta e a cama feita; espero que coma e beba à vontade e que depois durma até o despontar da madrugada.
A jovem, aceitando com prazer o convite, serviu-se das finas iguarias e vinhos que estavam sobre a mesa, deitando-se, em seguida, e adormecendo com um sono tão profundo, do qual não despertou nem com o ruído que os urubus e o falcão fizeram ao se recolherem.
Estes haviam chegado à meia-noite e o anão, muito alegre, logo lhes disse:
— Silêncio! No aposento da torre está dormindo uma jovem que a estrela d'alva nos enviou.
— É a minha noiva! - gritou alegremente o falcão, subindo apressadamente a escada que conduzia ao aposento onde a jovem dormia.
Ao entrar no quarto, devido talvez à emoção, não lhe possível ver o seu rosto. Por esse motivo, muito triste, tornou a descer a escada à procura dos companheiros.
Preocupados, os sete urubus juntaram-se ao seu amigo falcão e ao anão e subiram todos juntos para ver o que havia de verdade.
Ao entrar, viram sobre a cama, deitada e adormecida, uma jovem muito formosa. Sentaram-se ao redor do leito e seus olhos fitaram, com alegria e espanto ao mesmo tempo, o gentil rosto da jovem.
Passada a primeira emoção, o urubu mais velho disse para os seus irmãos:
— Não me resta a menor dúvida de que esta jovem é a nossa querida irmã. Como está crescida e formosa!
— É verdade! - acrescentou o segundo - É mesmo a nossa boa irmãzinha; reconheço-a pelos seus cabelos loiros e ondulados.
— E eu, pelas suas lindas faces.
— E eu, pela interessante covinha.
— E eu, reconheço-a muito bem pelas suas lindas mãozinhas.
— E eu, pelo anel que usa.
— E eu, decerto a reconheceria também, - disse o último - se ela abrisse seus belos olhos; oh! se ela isto fizesse, logo poria termo ao mau encanto que nos persegue!
Os sete irmãos resolveram logo acordar a menina, mas o anão a isso se opôs, dizendo:
— Pelo amor de Deus, não façam isso! O que devem fazer é transportá-la imediatamente para a casa de sua mãe, visto que, para que seja quebrado o nosso encanto, necessário é que ela saia deste castelo durante o sono.
Dito isso, o anão colocou no colo da menina a caixinha que encerrava as suas riquezas.
— Quando ela despertar em casa de sua mãe, imediatamente todos nós ficaremos livres do encantamento.
Momentos depois, os sete urubus transportaram sua irmãzinha para a casa de sua mãe e depois que ali a deixaram, voltaram apressados para o castelo encantado.
Algum tempo depois, a jovem despertava e sua mãe e o avô, encarando-a assustados, perguntaram-lhe:
— Então, onde estão seus irmãos?
— Eles também hão de vir. - respondeu a menina. Dizendo isso, entrou no quarto e abriu a caixinha com a chave de ouro. E querem saber o que dentro dela havia? Nada mais, nada menos que um pequeno espelho.
A jovem tirou-o da caixinha e ao colocá-lo diante dos olhos, as suas faces tingiram-se de vivo carmim, pois a sua imagem vista no espelho apresentava-se adornada de ouro e pedras preciosas, como se fora a noiva de um rei.
Ainda se achava sob a impressão de tão agradável surpresa e eis que, como que por encanto, surge à sua frente o jovem filho do conde do Castelo do Falcão, acompanhado pelos seus sete irmãos, então já sob a forma de esbeltos moços.
Eles abraçaram e beijaram sua mãe e seu avô; e o conde, com grande satisfação, pediu que concedessem a jovem para esposa do filho, no que foi atendido com grande contentamento de todos.
Uma alegria contagiante invadiu então o sombrio Castelo do Falcão, onde reapareceu o luxo e o brilhantismo dos tempos passados e ali se celebrou o mais feliz e festejado casamento de que há memória. Os sete irmãos, depois da penosa lição, tornaram-se homens estimados e dignos pelo resto da vida.
Coleção Reino Infantil - Volume 1
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