A resposta às duas perguntas é negativa. Ensinar caligrafia não é coisa do passado. E caligrafia é tão mecânico quanto o é falar, cantar, desenhar, pintar ou esculpir. Vamos aos detalhes.
O grafismo é uma forma de expressão do ser humano. O desenho e a escrita são as manifestações mais usuais. Ambas dependem de uma base física – ou mecânica – uma vez que o ser humano é físico, não é um puro espírito. E servem a propósitos os mais variados, inclusive para algumas das mais elevadas formas de manifestação do espírito humano.
O termo caligrafia – como ocorre com várias palavras – possui diversas conotações. No sentido literal significa escrita bonita, boa, perfeita. A palavra caligrafia evoca diferentes memórias em muitas pessoas. Para alguns lembra a letra rebuscada do convite de casamento ou a letra gótica dos manuscritos medievais. Para outros lembra intermináveis e repetitivos exercícios, para alguns, castigos e punições. Mas não é disso que se trata o ensino da caligrafia.
O ensino da caligrafia, no contexto escolar, tem dois objetivos: escrever com legibilidade e fluência. A legibilidade é uma condição da linguagem escrita: desde as cavernas, o homem escreve para o outro ler. "Escreveu não leu o pau comeu", como se diz no ditado popular. A escrita não é uma forma de expressão, é, antes de mais nada, uma forma de comunicação. Portanto, o "a" ou o "b" que eu escrevo não podem ser o meu "a" ou o meu "b", ele precisa ser o "a" e o "b" que qualquer leitor entende.
O segundo é o critério da fluência. O uso funcional da escrita – a alfabetização funcional – requer que a escrita seja feita num ritmo adequado às exigências da escola e da vida. Na escola há tempo para tudo, inclusive para copiar o que está no quadro, para dar respostas por escrito, fazer redações, testes, fazer anotações em aula, etc. Na vida há os recados, atas, registros, anotações e diversas outras oportunidades em que precisamos escrever "em tempo real", ou seja, próximos à velocidade da fala. E, claro, a fluência de escrita não desobriga nem a legibilidade nem a correção ortográfica.
Portanto, mesmo na era do computador, a caligrafia continua sendo um imperativo do sucesso escolar e social. Em todos os países do mundo a caligrafia é matéria obrigatória em 3 ou mais séries do ensino fundamental.
2. Justifica-se ensinar caligrafia na era do computador?
Não existe uma resposta definitiva para esta pergunta. Existem respostas práticas. A resposta prática mais importante é que a maioria dos alunos não possui computador nem a ele têm acesso na escola ou em casa. Portanto, ainda que vivam e sejam influenciados pela presença da informática, isso não significa que tudo o que fazem, lêem ou escrevem passa pelo computador. Isso também é verdade na maioria dos países desenvolvidos. Até este momento, o computador não substituiu a escrita à mão, nem nos países mais desenvolvidos. Na Finlândia, um dos países de maior desenvolvimento educacional, os professores aprendem a "letra de professor" durante seu curso de formação.
Uma segunda razão importante para ensinar caligrafia e praticar a escrita à mão reside na importância da caligrafia para automatizar o registro da forma ortográfica das palavras. Ou seja, a caligrafia ajuda na ortografia. E há fortes correlações entre domínio da ortografia e qualidade de redações dos alunos. Esse tipo de pesquisa sempre é feito comparando alunos que escrevem predominantemente à mão com alunos que aprenderam a escrever e escrevem predominantemente no computador. No entanto é prudente observar que cada vez mais é difícil encontrar pessoas que só escrevam num ou noutro modo.
3. O que significa dizer que o aluno precisa ter fluência para escrever?
Da mesma forma que existe fluência de leitura existe fluência para escrever. A fluência para escrever se avalia pela velocidade (palavras por minuto) e legibilidade. Conforme já observado em pergunta anterior, a fluência é uma exigência da alfabetização funcional: para escrever de forma funcional, na escola ou nas situações concretas da vida, o indivíduo precisa escrever com uma velocidade compatível com as exigências da situação. E, claro, sempre assegurando a legibilidade e correção ortográfica.
4. Como se deve ensinar caligrafia?
O ensino da caligrafia deve se situar no mesmo plano do ensino de outras artes com forte componente manual, como a expressão corporal, a dança, a música, o desenho, pintura e escultura. Só que deve ser feita de forma mais profissional e intensiva na escola, pois a escrita, ao lado da leitura, constitui a principal ferramenta de trabalho da escola e da vida social e intelectual. O domínio da escrita é essencial para assegurar a participação do indivíduo em qualquer ambiente letrado, e, portanto, é instrumento essencial para o exercício da cidadania.
Como atividade motora, a caligrafia pode ser facilitada pelo desenvolvimento de competências motoras grossas e finas ao longo dos anos que precedem a pré-escola. O movimento de pinça (pegar um grão de feijão num monte) é o indicador mais próximo de que a criança tem condições de pegar no lápis e usá-lo de forma adequada. Brincadeiras e atividades bem orientadas, a partir de modelagem e feedback precisos pelos pais e educadores infantis ajudam a preparar o aluno para as exigências posteriores da caligrafia. Se desde cedo a criança já aprender a desenhar, garatujar e "escrever" adotando posturas corretas, usando adequadamente o espaço da mesa ou carteira, o papel e o lápis e pincéis, mais facilidade terá para se desenvolver na caligrafia.
O ensino caligrafia normalmente começa por volta dos 4 a 5 anos, por meio de atividades planejadas, mas que são executadas de maneira informal e lúdica. Os jornaizinhos infantis e livros de recreação estão repletos de exercícios que promovem a coordenação viso-motora, lateralidade, controle de movimentos, atenção a detalhes, capacidade de seguir linhas, instruções, enfim, uma série de micro-habilidades fundamentais para preparar o aluno para os aspectos mecânicos da escrita. Esses exercícios, bem como atividades de "escrita espontânea" também preparam a criança para entender a importância e os usos práticos da escrita nas várias situações sociais (escrever o nome, dar título aos trabalhos que faz, nomear os objetos representados, etc.). Nesse período, a maioria das crianças que vive em ambientes letrados também aprende a copiar o formato das letras – pelo menos das letras de forma.
O ensino formal da caligrafia normalmente acompanha o processo de alfabetização. Um bom programa de caligrafia inclui três conjuntos importantes de competências: a gestão do espaço gráfico, lateralidade e controle do lápis; o domínio das formas básicas de grafismo (tipos de traço, controle do limite, etc.); o domínio das formas das letras (de forma e depois cursiva).
O domínio da letra cursiva não é arbitrário: deve ser um alvo a ser perseguido em qualquer escola, e o mais cedo possível. A razão é prática: por não tirar o lápis do papel, a escrita se torna mais eficiente, e isso ajuda a desenvolver a fluência. Existem princípios de psicomotricidade para orientar a seqüência adequada para o ensino das letras e suas formas – isso não é arbitrário.
A partir daí, o resto é prática, guiada por bons modelos – especialmente o exemplo do professor no quadro-de-giz e nos manuscritos que passa para os alunos, bem como no cuidado na correção e apoio às tarefas dos alunos.
5. Por que não ensinar caligrafia em contexto, a partir das letras que vão aparecendo nas leituras feitas em sala? Não existe um risco de fazer um ensino mecânico e descontextualizado?
Há várias maneiras de responder a essa pergunta.
Primeiro: o contexto da caligrafia é o mundo do grafismo, qual seja representar graficamente o mundo e seus artefatos. Um deles são as letras do alfabeto. Portanto, o contexto relevante são as formas que existem no mundo e o alfabeto.
Segundo: a função do ensino contextualizado é dupla. De um lado, motivar. De outro, permitir à criança partir do concreto para o abstrato. No caso da caligrafia, é muito raro ver uma criança de 5 ou 6 anos que não esteja louca para aprender a ler e escrever. Somente uma experiência de vida ou uma experiência escolar profundamente negativa levaria uma criança a não querer aprender a ler e escrever. O contexto, portanto, está dado. Quanto ao segundo quesito, ele não se aplica – não existe complexidade conceitual associada à aprendizagem de caligrafia, a única transferência de aprendizagem é de natureza motora, e se faz pela aplicação prática e exercícios.
Terceiro: em parte, aprender caligrafia é semelhante a malhar na academia. Podemos malhar por diversas razões – normalmente as razões são razões de saúde, estética ou ambas. É este o contexto que nos motiva – ou força – a exercitar, muitas vezes com suor e lágrimas. A visão do resultado final – boa saúde, uma bela forma – nos ajuda a manter a motivação, mas não torna a atividade menos exigente ou menos mecânica.
6. Devemos ensinar caligrafia na ordem alfabética? Ou ensinando as letras que aparecem nas leituras que a criança faz?
Novamente aqui estamos de volta à questão do contexto. O alfabeto é um contexto legítimo para ensinar caligrafia. Mas não é necessariamente o único, nem é necessariamente o melhor. Há vantagens de ensinar as letras na ordem alfabética do ponto de vista de motivação, o aluno vai verificando o domínio progressivo da seqüência alfabética e isso lhe dá motivação para prosseguir até chegar ao Z. Mas há outras propostas defensáveis – por exemplo, alguns métodos de ensino de caligrafia elegem alguns tipos de letra de acordo com a curvatura, partindo do mais fácil para o mais difícil – como se faz no ensino profissional de desenho e artes plásticas. Os argumentos lógicos para essas propostas são defensáveis, mas não há evidências empíricas a respeito de sua maior efetividade.
A única proposta não defensável é a do ensino aleatório e incidental da caligrafia, a partir do contexto da leitura. O ensino da caligrafia deve ter seu tempo e espaço próprios, e, conquanto possam e devam ser associados às suas funções práticas, deve ser objeto de ensino e prática descontextualizada. A função da escola – no ensino de caligrafia e em tudo – não é ensinar as pessoa a aprender em contexto: é partir de contextos para ensinar as pessoas a abstrair e funcionar fora de contextos. É nisso que consiste o objetivo de qualquer proposta de ensino. Na caligrafia não deve ser diferente.
7. É importante ensinar o aluno a pegar no lápis? Postura correta?
Imagine uma escola profissional de eletricistas ou cozinheiros. As primeiras aulas dessas escolas são sempre iguais: o uso dos instrumentos de trabalho. Imagine um agricultor que não aprendeu a usar a enxada corretamente. Ou um atleta que não sabe como cuidar de seus músculos.
Não é diferente nas questões de postura e de pegar no lápis. Um aluno típico deverá ficar na escola durante 15 anos ou mais. Ensinar a postura correta para sentar e escrever e a usar o instrumento central do trabalho escolar, o lápis, deve ser função primordial do professor. Trata-se de um princípio básico de ergonomia e saúde física. A correção de maus hábitos é muito mais difícil do que ensinar certo da primeira vez. A conseqüência de maus hábitos pode ser danosa para o resto da vida.
8. Por que não deixar as crianças escreverem do jeito que elas sabem ou do jeito que elas gostam?
Alguns educadores insistem muito na individualidade, na idiossincrasia. No caso da caligrafia, isso se reflete em afirmações como "o aluno tem seu próprio ritmo para escrever" ou "o aluno deve escrever do jeito que sabe" ou "o aluno deve escrever com sua própria letra", "a letra revela a individualidade do aluno" ou com proposições de que preocupar-se com a postura e a ortografia tira a atenção do essencial, que é a substância do que vai ser escrito.
Não há nada de errado em considerar diferenças individuais. Mas há algo de errado em colocar o aluno no centro do processo, ao invés de colocá-lo em relação à tarefa, de forma proporcionada e adequada.
A função da escola é permitir às crianças atingir seu potencial máximo. Para tanto, precisa instrumentalizar os alunos para serem eficientes no que fazem. O domínio dos aspectos mecânicos – e outros aspectos básicos – da escrita é fundamental para liberar espaço no cérebro para cuidar dos aspectos mais complexos da aprendizagem e da composição escrita. Daí a importância de, de um lado, ensinar bem as habilidades básicas, e, de outro, separar as funções de ensino, ensinando uma coisa de cada vez, cada coisa a seu tempo, com seus métodos, técnicas e especificidade. Até na primeira infância a criança já deve ser estimulada a criar textos – mas não a redigi-los: é o adulto quem deve servir de escriba. Separar as exigências cognitivas ajuda muito mais a criança do que exigir que ela faça tudo de uma só vez. O resultado será muito pior.
Quanto a questão do ritmo, trata-se de uma questão de treino. Pessoas lentas se tornam rápidas com treino – dentro dos limites de suas capacidades. Não se pode confundir diferenças individuais e idiossincrasias com preguiça, falta de aplicação ou de proficiência.
9. Como lidar com as crianças que têm dificuldade para aprender caligrafia?
Tudo aprendemos através dos sentidos. No caso da caligrafia, existem recursos denominados multissensoriais para ajudar as crianças, primeiro corporalmente, depois nas mãos, depois nas pontas dos dedos, a perceberem as formas e produzirem os movimentos necessários para obter as formas das letras.
Um aspecto muito relegado nas escolas são os alunos canhotos, que são muito desfavorecidos pelas carteiras do tipo universitário e pelo ensino que não leva em conta os aspectos diferenciais de sua lateralidade. Existem orientações, inclusive próteses acopladas ao lápis que podem ajudar alunos canhotos a escrever com mais facilidade.
10. Até que série devemos ensinar caligrafia?
No mínimo até o aluno dominar com proficiência a escrita cursiva. Idealmente até que o aluno adquira a capacidade de escrever na velocidade necessária para acompanhar o ritmo do programa de ensino com legibilidade. Os tipos de atividade, no entanto, devem mudar ao longo dos anos, a exercitação e a cópia passam a predominar depois que o aluno já aprendeu as técnicas básicas da escrita.
No mínimo até o aluno dominar com proficiência a escrita cursiva. Idealmente até que o aluno adquira a capacidade de escrever na velocidade necessária para acompanhar o ritmo do programa de ensino com legibilidade. Os tipos de atividade, no entanto, devem mudar ao longo dos anos, a exercitação e a cópia passam a predominar depois que o aluno já aprendeu as técnicas básicas da escrita.
Fonte: http://vamoseducar.blogspot.com
2 comentários:
Olá! Entrei , gostei muito do que vi e a partir de agora sou seguidora. Convido-a para dar uma passadinha no meu espaço. Abraço e sucesso! Joyce.
Prô Rirela
Você é muito modesta. Procurei mais informações sobre o seu perfil e não encontrei. Gostei muito da matéria sobre caligrafia.
Beijo grande
Nilce
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